Os três cachorros do senhor Heitor

domingo, 10 de janeiro de 2010

Quando Zé Luiz apareceu morto, atrás do banco da pracinha, a cidade toda correu para ver. Até aí, nenhuma novidade. Cidade pequena é assim mesmo. Morte é sempre notícia. Todo mundo quer olhar, dar palpite, fazer comentários e, no fundo, dar graças a Deus porque não foi ninguém da própria família.
Quanto pior a desgraça, mais a cidade se agita. E, naque¬la manhã de vinte e nove de outubro, a pracinha parecia um formigueiro. Veio gente até dos sítios e fazendas vizinhas. Todo mundo queria ver o pequeno cadáver.
Era mesmo impressionante. No chão, sobre o gramado, estava caído o corpo de um menino clarinho, franzino, de cerca de dez anos. Todos o conheciam. Era Zé Luiz, o mesmo que vivia correndo para cima e para baixo pela cidade inteira, até de noite, porque não temia nada, nem alma penada nem ladrão e bandido.
Mas, agora, o rosto de Zé só mostrava medo. Os olhos arregalados, a boca totalmente aberta, os dedos das mãos crispados. Quem o visse podia jurar que ele tinha morrido de susto.
A multidão se revezava para espiar o morto, e cada um saía dando seu palpite sobre o evento misterioso. O corpo não apresentava nenhum ferimento. Até onde se soubesse, o menino não tinha doença nenhuma. Só uma coisa era certa: ele deve ter visto uma coisa terrível antes de morrer.
Uma menina bem pequena, de cerca de cinco anos, se esgueirou por entre as pernas dos curiosos e chegou bem perto do corpo caído. Foi ela quem observou as marcas de dentes nos braços e no pescoço do mortinho.
— Um cachorro mordeu o Zé — anunciou ela.
Fez-se um silêncio repentino na praça. Quem estava perto agachou-se para ver melhor. A menina tinha razão. Eram três marcas de mordida: nos dois braços e no pescoço. Pareciam produzidas por dentes de cachorro.


O corpo foi enviado para a cidade vizinha porque em Bam¬buzal não havia Instituto Médico Legal para fazer a autópsia. Três dias depois, chegou o resultado. Zé Luiz tinha sofrido uma parada cardíaca, possivelmente provocada por fortíssima emoção, já que não era portador de nenhuma cardiopatia anterior. As marcas de mordida eram muito superficiais, não tinham chegado a ferir a pele. Aparentemente, não tinham ligação com o óbito.
À noite, Marcelo, Tito e Rosana reuniram-se na pracinha, como faziam sempre. Tinham treze anos e conheciam Zé Luiz. O assunto, como não podia deixar de ser, era a morte miste¬riosa. Ou o assassinato, como suspeitavam.
— Foi bem ali que ele foi encontrado — apontou Rosana.
Foram até o local, um dos menos iluminados da praça. A lua já começava a minguar, mas ainda refletia luz suficiente para que pudessem observar o gramado. Mas não havia nada ali que pudesse ser encontrado. Só o canteiro de plantas, agora um pouco amassado. Além disso, nenhum deles tinha a menor vocação para detetive. Só queriam entender a morte do colega.
— Esse lugar me dá arrepios — comentou Tito.
Não era para menos. Um vento gelado começava a so¬prar, levantando do chão algumas folhas secas e balançando suavemente os galhos das árvores.
— Vamos sair daqui — sugeriu Rosana.
Ninguém protestou.
Foram caminhando em silêncio pelas ruas já escuras. Afastaram-se do centro e continuaram a andar, sem muita noção de para onde ir, só para respirar o ar da noite, cansar o corpo e chamar o sono. Foi Marcelo quem reparou primeiro.
— Alguém se mudou para a casa de dona Zezé...


A casa de dona Zezé era considerada assombrada pelos mora¬dores da região. A mulher era uma velha meio doida, que vivia trancada com oito cachorros. As janelas ficavam sempre fechadas, e a porta raramente se abria.
Quando dona Zezé morreu, ninguém se deu conta. Só muitos dias mais tarde, um vizinho estranhou a falta dos lati¬dos. Bateu a campainha, chamou e, diante do silêncio e do mau cheiro que já escapava pelas frestas da janela, decidiu arrombar a porta. Encontrou a velha e os oito cães mortos.
Era estranho que alguém tivesse se mudado para lá. Até onde soubessem, ninguém com juízo teria comprado o imó¬vel. Mesmo que não conhecesse a má fama do lugar, bastava olhar para o jardim ressecado, as paredes descascadas e o aspecto tétrico da casa para evitá-la.
Mas o fato é que havia luz lá dentro, embora todas as janelas estivessem fechadas. E um som familiar, como se cães ganissem baixinho.
— Cruz-credo, vamos sair daqui — pediu Tito, assustado.
Rosana concordou rapidamente. Só Marcelo ainda queria ficar mais um pouco. Além de não ser medroso, estava intri¬gado com a morte do menino. De alguma maneira, suspeita¬va de que a falta de punição do culpado (porque ele não tinha a menor dúvida de que havia um culpado) colocava a vida de todos em risco.
Decidiu voltar lá no dia seguinte.
Sozinho.


Antes das sete da manhã, Marcelo já estava de tocaia no jar¬dim da casa maldita. Passou pelo portão sem fazer barulho, aproximou-se de uma janela fechada e colou o ouvido nas persianas de madeira, tentando escutar algum som. Nada. A casa parecia tão vazia quanto tinha estado nos últimos anos.
Respirou fundo e tirou do bolso uma chave de fenda. Pretendia forçar um pouco a janela. Encaixou a ponta da chave entre duas persianas e iniciou um delicado movimento de alavanca até sentir a madeira cedendo sob a pressão. Até que foi fácil. Estava podre e soltou-se sem fazer nenhum ruído. Pegou cuidadosamente a lâmina de madeira e retirou-a de seu encaixe. Agora, já tinha uma boa fresta por onde espiar.
No entanto, antes que pudesse saciar sua curiosidade, ouviu um estalido às suas costas. Virou-se rapidamente. Deu de cara com um homem alto, ladeado por três imensos cães negros.
O sujeito era grisalho e tão magro que parecia uma cavei¬ra coberta por uma fina camada de pele. No meio do rosto descarnado, emoldurado por uma barba rala e branca, só se destacavam dois olhos arregalados, carregados de fúria em estado bruto. Curiosamente, os cães tinham o mesmo olhar fixo e raivoso.
— O que você está fazendo aí, menino?
Saída da boca de tal figura, a voz era surpreendentemen¬te calma.
Lentamente, os cães se aproximaram de Marcelo e forma¬ram um semicírculo em torno dele. Acuado, o menino tentou manter o sangue-frio e respondeu:
— Estou procurando pela dona Zezé.
O homem permaneceu impassível.
— Dona Zezé morreu faz muito tempo. Sou filho dela.
Sem alterar a voz, sempre mansa, prosseguiu:
— Gostaria de entrar?
— Não, muito obrigado. Só estava de passagem mesmo.
Marcelo estava sem ar. Só pensava numa maneira de sair dali. Tinha sido muito imprudente em espionar a casa maldi¬ta sem contar a ninguém.
— Quando quiser, venha me fazer uma visita — disse o homem. — Meu nome é Heitor.
— Prazer, me chamo Marcelo. Mas agora tenho que ir mesmo. Com licença — disse o menino, tentando manter a respiração sob controle.
A um sinal de Heitor, os cachorros se afastaram e deixa¬ram Marcelo passar. Foi caminhando lentamente até a estra¬da, tentando parecer muito natural e tranqüilo. Só quando já estava a uns cem metros da casa, saiu em disparada.


Pronto, agora já sabia quem morava na casa maldita. E tinha certeza: era o assassino. O olhar de Heitor — e o dos cães — não deixava nenhuma dúvida. O problema era provar.
Quando relatou sua aventura matinal aos amigos, foi cri¬vado de perguntas. Todos queriam detalhes. Mas não havia muito o que dizer. Só uma impressão, forte demais, de que o perigo estava ali. E estava à espreita.
Necessitaria reunir muita coragem para voltar lá. E teria que fazê-lo sozinho. Tito e Rosana avisaram logo: estamos fora!
Os dias foram passando e a tranqüilidade voltou à peque¬na cidade. Cerca de um mês mais tarde, a morte do menino já se diluía entre outras novidades: o casamento de uma viúva com um rapaz vinte anos mais novo, a surra que a mulher do padeiro tinha dado nele, o sofrimento da mocinha da novela das oito.
Só Marcelo ainda sentia-se inquieto. E era esse o assunto da conversa que mantinha com Tito. Era uma bela noite de lua cheia e passeavam pela praça enquanto esperavam a che¬gada de Rosana. Tito, sempre cauteloso, não queria mais se meter no assunto.
— Você não é detetive, nem a polícia conseguiu descobrir nada de errado. O Zé morreu de susto. É triste, mas é verdade. Deixa isso pra lá.
Marcelo não se convencia. Esperava que Rosana chegas¬se para apoiá-lo, mas a amiga estava demorando. Melhor mesmo era ir para casa e estudar para a prova do dia seguinte. Prova de história, sua matéria preferida. Tinha andado tão absorvido no mistério da casa de dona Zezé que mal tinha olhado os livros.


Na manhã seguinte, não saiu de casa. Ainda estudava o últi¬mo capítulo quando Tito chegou à sua casa, esbaforido.
— Vem correndo. Você não vai acreditar!
Marcelo ainda tentou fazer algumas perguntas. Era impossível. Tito o arrastava, com os olhos arregalados e mal conseguia articular uma palavra. Cerca de dois quarteirões adiante, viu uma pequena multidão defronte a uma constru¬ção abandonada. Tito o arrastou pelo meio das pessoas, trope¬çando em todo mundo, até chegar aos fundos da casa inaca¬bada. Caído no chão estava o corpo de Rosana.
Tinha os olhos arregalados, como se tivesse acabado de presenciar uma cena terrível, a boca aberta de pavor e os dedos crispados. Marcelo afastou os curiosos com alguns safanões, aproximou-se da morta e pegou seus braços. Em cada um deles, havia uma marca de mordida de cão. Afastou os longos cabelos de Rosana e constatou outra marca no pescoço.
Olhou para Tito. Não tinha mais dúvidas. O assassino era o mesmo.
Foi tirado dali pelo delegado, um sujeito gordo e pregui¬çoso, que agradecia a Deus todas as manhãs por ter sido lotado numa cidadezinha tão calma. A morte de Rosana, em circuns¬tâncias tão misteriosas quanto as que cercavam as do menino no mês anterior, não o agradava em nada. Só aborrecia.
— Vamos sair daqui, deixem a polícia fazer seu trabalho —resmungava o delegado como se falasse para todos e, ao mesmo tempo, para ninguém.
Marcelo não se segurou:
— Que trabalho? Até hoje ninguém descobriu nada sobre a morte do Zé!
Estava indignado. Já se preparava para começar um discurso de protesto quando viu, ao longe, uma figura conheci¬da. Era o senhor Heitor, cercado por seus três cães negros, que olhava fixamente para ele.
Foi o suficiente para secar toda a saliva que havia em sua boca. Uma sensação ruim, de estar sendo dominado por aque¬le rosto imóvel, o paralisava. Dava vontade de gritar: “Foi ele!!!” Vontade de bater no delegado que olhava para o outro lado e não percebia a presença maligna. Vontade de apontar o culpado para a multidão. Mas parecia que o senhor Heitor era invisível e só Marcelo podia vê-lo. Estava ali, parado, com seus olhos incendiados destacados no rosto inexpressivo. Tão soturno que só podia ser ele o culpado. E ninguém via nada. E Marcelo não conseguia articular uma só palavra. Mudo. Paralisado. Como se tivesse sido hipnotizado, aprisionado no fundo de um poço onde só havia pânico.
Foi tirado do transe pelo delegado.
— Sai daí, menino, deixa a polícia trabalhar.
Ainda sob efeito da paralisia, Marcelo tentou indicar o culpado, sua mão se moveu muito lentamente. Lentamente demais.
Quando conseguiu apontar para o lugar certo, o senhor Heitor já tinha desaparecido.


Denunciar o verdadeiro assassino tornou-se uma obsessão para Marcelo. Vigiava a casa maldita de dona Zezé, estudava todos os caminhos que passavam por lá, pesquisava a história familiar dela: Maria José Peçanha Bastos. Mas nada fazia muito sentido. Tirando alguns casos de loucura, a trajetória dos Peçanha Bastos era muito parecida com a de todos daque¬le lugar, quase todos netos de gente que se remediara no campo e vira os filhos renegarem a lavoura para se tornarem barbeiros, alfaiates ou comerciantes.
O senhor Heitor foi o quinto filho de dona Zezé, e o único sobrevivente. Todos os outros morreram ainda crianças.
A campana na porta da casa também não rendera muitas informações úteis. Se durante os vinte e sete dias de vigilância o senhor Heitor saíra de casa, foi nas horas em que Marcelo tinha se distanciado dali. Durante todo o tempo da vigia, a casa permanecera trancada e silenciosa. O único sinal de vida era a luz que se acendia ao cair da noite e que podia ser entre¬vista pelas frestas das persianas. Mais nada.
No entanto, Marcelo sabia que alguma coisa aconteceria naquela noite. A lua estaria cheia, assim como estivera na oca¬sião das outras mortes. Preparou-se cuidadosamente para pegar o assassino em flagrante. Vestiu roupas escuras, que o camuflariam nas sombras da noite. Calçou seu tênis mais silencioso. Pegou às escondidas a espingarda de seu pai, veri¬ficou se estava carregada, passou a tira de couro pelo peito e ajustou-a para que a arma ficasse bem presa às suas costas.
Assim que abriu a porta de casa, um vento gelado passou por dentro de sua roupa como se fosse uma cobra escorrega¬dia. Mas sabia que não poderia ceder ao temor. Se o fizesse, mais cedo ou mais tarde seria a próxima vítima.
Por volta das nove da noite, partiu em direção à casa maldita. Ficaria ali, de vigia, até que o assassino aparecesse.
Acomodou-se numa moita próxima ao portão e dispôs-se a esperar o tempo que fosse necessário. Levantou o pulso esquer¬do para ver as horas mas, droga, tinha esquecido o relógio.
A casa permanecia fechada. Apenas as persianas deixa¬vam entrever a luz mortiça interior. A estrada, totalmente deserta. O jeito era aguardar.
Deixou que o tempo escoasse lentamente, como sempre acontece nessas ocasiões em que nada acontece e a gente só espera. A noite estava estranhamente silenciosa. Sapos, grilos, corujas, cães, gatos, toda a fauna que costuma distrair a escuridão com seu canto noturno emudecera. Não havia som de passos, nem de vento, nem de bater de asas. Uma espessa camada de silêncio parecia comprimir seus ouvidos.
Até a luz da lua cheia parecia diferente, mais brilhante. Esperar, imóvel, naquelas condições, provocava um entorpecimento nos sentidos, tudo começava a parecer meio irreal, como um sonho. Mas Marcelo não ousava se mexer. Temia que qualquer movimento provocasse um ruído que pareceria estrondoso em meio à quietude do lugar.


Foi tirado do torpor por um som que parecia vir de muito lon¬ge. Prestou mais atenção. Alguém vinha chegando pela estra¬da. E não estava sozinho. Agora podia perceber mais nitida¬mente o barulho de passos meio arrastados e também o som característico de patas de cachorro. Tirou a espingarda do ombro e colocou-se em posição de tiro, ainda protegido pela moita. E foi dali que viu tudo.


Antes mesmo que os visitantes entrassem em sua linha de visão, percebeu que a porta da casa se abria. O senhor Heitor postou-se na soleira. Obviamente, esperava por sua presa. Poucos segundos depois, Marcelo foi surpreendido pela che¬gada de um estranho séquito.
Diante do portão, estava um menino de seus dez anos de idade. Dois dos cães o prendiam com os dentes, cada um por um braço. O terceiro mordia sua garganta. Os três animais vinham andando de costas, puxando o menino que, de tão apavorado, nem pensava em reagir.
Estava assustado, mas vivo, constatou Marcelo. O fato lhe deu uma dose suplementar de coragem. Antes que o grupo chegasse à soleira da porta, onde o aguardava o senhor Heitor, Marcelo levantou-se, com a espingarda já preparada, e disparou.
O primeiro tiro acertou o cachorro que agarrava a gar¬ganta do menino. O bicho caiu morto. A um sinal do senhor Heitor, os outros dois soltaram a presa e pularam na direção de Marcelo. Com mais um tiro, conseguiu acertar o segundo. Mas não teve tempo para acabar com o terceiro. Imenso, pesa¬do como a mais profunda noite e forte como um animal sobrenatural, o cão derrubou-o sem a menor dificuldade e prendeu sua garganta entre os dentes. A última coisa que Marcelo pôde ver antes que a cara do bicho ocupasse todo o seu campo de visão foi o menino fugindo pela estrada.
Nem a morte dos cães nem a fuga de sua quase vítima abalaram a impassibilidade do senhor Heitor. Da soleira da porta, de onde não tinha se movido durante toda a cena, o homem deu apenas um assovio curto. Obediente, o imenso cão negro conduziu Marcelo ao interior da casa.


Para surpresa do menino, embora os móveis fossem velhos e gastos, e apenas uma lâmpada pendesse do teto, tudo parecia cuidadosamente organizado. A mesa estava posta para o jan¬tar com dois pratos de louça florida com as bordas lascadas, uma jarra cheia de um líquido dourado, semelhante a chá, toalha e guardanapos de adamascado branco e amarelo meio puído. Tanto a sala quanto os objetos estavam limpos e arru¬mados, a toalha passada a ferro e os guardanapos dobrados por dentro de argolas de alpaca.
A aparente normalidade da casa só contrastava com o odor nauseabundo que parecia vir do segundo andar. Marcelo espichou um olho para a escada. Não dava para ver nada. Os últimos degraus estavam mergulhados na mais completa escuridão. Mas podia identificar claramente o cheiro: uma mistura de lodo, mofo e corpos em decomposição.
Assim que a porta se fechara atrás do menino, o cão sol¬tara sua garganta. Agora, estava calmamente deitado debaixo da mesa, como um cachorro doméstico qualquer. Marcelo não ousava se mexei. Apenas seus olhos vasculhavam o ambiente em busca de uma saída — que evidentemente não existia. Estava trancado na companhia do senhor Heitor e do cão que lhe restara.
Sem alterar sua fisionomia impassível, o homem chegou ao pé da escada e olhou para a escuridão. Em seguida, gritou para alguém que deveria estar no segundo andar:
— Mamãe, o menino já chegou.
Embora Marcelo não ouvisse nenhum som vindo de cima, o homem falou, como se respondesse à presença invisível:
— Está bem.
Em seguida, virou-se para Marcelo, apontou para a esca¬da e disse:
— Suba.


Impossível. Suas pernas não respondiam a comando nenhum, nem subir, nem fugir, nem mesmo tremer. Parecia que o ar tinha se tornado mais denso de repente. Pesado, quase oleo¬so, tornava os movimentos lentos, mais lentos, muito lentos. Marcelo se lembrou de um trabalho escolar feito com gesso. Era assim mesmo. Primeiro, mergulhou o pó branco na água e foi mexendo a mistura, que parecia leite. Aos poucos, o líquido foi se tornando mais espesso, e mais, e mais, até virar quase pedra.
Era exatamente isso que parecia acontecer com o ar à sua volta agora. Não, era mais fluido, imperceptível, um veículo facilitador do movimento. Outra lembrança: agora estava cor¬rendo pela rua, fugindo de uma pedrada que Rosana teimava em acertar nele. Tudo era tão fácil. O medo ajudava a risada, que impulsionava as pernas, que fazia o corpo atravessar o ar feito uma flecha. Um prazer intenso.
Mas agora sabia que nunca mais haveria prazer no medo. Estava paralisado. A voz do senhor Heitor chegava a seus ouvi¬dos como se viesse de muito longe. E repetia: Suba! Mas não havia mais movimento, não havia mais corpo nem vontade. Só o ar que virava pedra à sua volta.
Foi quando sentiu os dentes do cachorro em sua gargan¬ta. Uma mordida suave, mas firme, como as que as cadelas costumam dar nos filhotes para obrigá-los a fazer alguma coisa que não querem. O cão o puxava. E ele o seguia.
Botou o pé no primeiro degrau, sabendo que, ao chegar ao topo da escada, só haveria escuridão.
E mais nada.

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